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Racismo à flor da pele ou Sobre Questões Raciais Na Voz de Uma Negra Não-Americana

  • Foto do escritor: Júlia Mayumi
    Júlia Mayumi
  • 16 de jan. de 2016
  • 5 min de leitura

No livro "Americanah", da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, são apresentados diversos relatos sobre as dificuldades de ser negro nos Estados Unidos e na Inglaterra. A obra, publicada no Brasil em 2013 pela Companhia das Letras, explora tanto o preconceito velado quanto o explícito, através de diversas situações que mostram que o racismo não depende de gênero ou classe social.

A história tem como focos narrativos os nigerianos Ifemelu e Obinze, que na adolescência foram um casal e cujo relacionamento foi interrompido pela mudança de Ifemelu à Filadélfia, EUA, onde pretende graduar-se na área de comunicação. A maior parte do enredo é narrado por ela, embora hajam vários capítulos na voz de Obinze, que, após uma curta temporada na Inglaterra, retorna à Nigéria.

A obra aborda levanta discussões a respeito de vários assuntos interessantes. Logo no início, conhecemos os pais de Ifemelu. O pai é um "funcionário público com ambições intelectuais", um homem inteligente que sente-se frustrado por não ter podido fazer faculdade, por motivos econômicos, e tenta compensar a ausência de um diploma usando vocábulos extensos. A mãe é cristã e acredita fielmente em tudo o que os líderes de sua igreja pregam e ditam como sendo correto, sempre colocando a culpa de suas desgraças no "demônio". Essa personagem, em especial, é uma pequena menção ao tema do fanatismo religioso cristão que subjulgou as crenças politeístas tradicionais nigerianas, abordado com mais especificidade pela autora em "Hibisco Roxo" (2008).

Durante a adolescência dos protagonistas, fica clara a influência dos países desenvolvidos na vida dos jovens nigerianos. Os que viajam com frequência à Europa e à América do Norte são alvo de interesse e admiração por parte dos colegas, e todos que têm acesso optam pela formação bilíngue em língua inglesa. O igbo, idioma da etnia de Ifemelu, é praticamente usado somente em família, comos se essas pessoas fossem imigrantes em sua própria terra.

Os primeiros meses de Ifemelu nos Estados Unidos são extremamente conturbados, e apresentam uma denúncia às precárias condições de vida a que os imigrantes, no caso os africanos, são submetidos ao chegarem à América. Tia Uju, uma das coadjuvantes mais presentes no enredo, é um claro exemplo disso: formada em Medicina pela Universidade da Nigéria, passa anos trabalhando em até três subempregos simultâneos até conseguir validar seu diploma e ser admitida em uma clínica particular - onde passa a receber desde olhares enviesados até recusas de atendimento por parte de pacientes brancos que não acreditam que ela seja capacitada para a função.

Quando finalmente consegue melhorar de vida, Ifemelu cria um blog famoso para falar justamente sobre o tema central de "Americanah": o racismo. Uma das passagens mais interessantes é a ida dela a um cabeleireiro especializado em tranças afro, cujas cenas mostram pinceladas da vida das imigrantes africanas que se mantiveram nas classes mais baixas. Um ponto que é explicitado ao leitor, por exemplo, é o de que os africanos imigrantes sempre dizem que vêm "da África", mas raramente explicitam o país, visto que a maior parte do mundo não conhece sequer os nomes das nações africanas. "Minha amiga falou que era de Burkina Fasso e lhe perguntaram se fica na América Central", revela uma das personagens (confesse: você não faz ideia de onde fica Burkina Fasso).

Outra parte curiosa da história se passa durante a graduação de Ifemelu, quando ela se une à Associação de Estudantes Africanos e descobre que em sua faculdade também existe a União dos Estudantes Negros, apontando a distinção entre aficanos americanos e afro-americanos (na qual eu honestamente nunca havia pensado, mas de fato faz bastante sentido). Após terminar o curso, Ifemelu passa por alguns empregos até a criação de seu blog, e depois desse período conhecemos a vida amorosa da personagem, seu relacionamento com um branco rico e um negro de classe média alta. A própria narração do setor emocional da vida de Ifemelu é um desafio à uma posição mencionada no meio do livro sobre o modo como a indústria cultural em geral retrata os negros. Explicando.

Há dois momentos da obra em que o tema é mencionado: inicialmente, há a crítica ao fato de que, no cinema americano, as atrizes negras costumeiramente recebem o papel de "melhor amiga", e, enquanto uma luta pela aceitação da sociedade a respeito de sua raça, a outra conquista o amor verdadeiro. "Por que a negra precisa de um motivo heroico e nobre e não pode simplesmente querer encontrar um boymagia?" é basicamente o questionamento desse trecho. Posteriormente, através de uma personagem negra que decide publicar um livro, há a crítica aos romances que tratam do racismo como tema secundário. Segundo o editor da fictícia escritora, temas raciais deveriam ser tratado de modo brando, como se fossem um problema secundário, e romance deve ser adicionado à história para que se torne comercializável. Em resposta à essas duas posturas, Chimamanda cria uma trama que retrata fortemente as questões raciais E apresenta diversos capítulos românticos, recheados inclusive com cenas de sexo.

"Americanah" traz ainda um "bônus" aos leitores brasileiros: uma passagem na qual um personagem afirma ter visitado nosso país e, ao se dirigir a lugares e eventos destinados a pessoas abastadas - como ele -, era frequentemente o único negro presente e as outras pessoas tinham uma "reação de simpatia, como quem diz que você está comentendo um erro, não pode ter essa aparência e viajar na primeira classe", muito embora tivesse lido que "o Brasil é a meca das raças". Essa menção ao país em que vivemos leva a um questionamento a respeito do preconceito racial existente aqui, do qual peço licença para me desviar do enredo do livro em questão e contextualizar o tema em nossa realidade.

A própria autora, em visita ao Brasil há oito anos (sim, já passaram-se oito anos desde 2008. Sim, o tempo voa!), afirmou ao jornal Estadão que perguntou sobre raça e ficou assustada com quantas pessoas lhe disseram que não havia problemas - todas elas eram brancas. Isso mostra que, por aqui, o mais frequente é o preconceito velado, que é demonstrado de modo mais sutil, sem agredir abertamente ao discriminado - desde um olhar torto a um negro no transporte público até a preferência por brancos em entrevistas de emprego -. Comumente, essas pessoas afirmam não serem preconceituosas, pois sabem que serão julgadas pela sociedade. No entanto, enquanto suas atitudes forem guiadas por essa ideia, não será possível estabelecer o modelo democrático e igualitário que o Brasil muita vezes finge possuir.

Chimamanda Ngozi Adichie traz com "Americanah" muitos debates e tópicos que precisam ser repensados urgentemente, através de uma narrativa fluida e extremamente bem construída, personagens realistas e diálogos provocadores. Uma leitura indispensável a todos que acreditam na igualdade entre os seres humanos.

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