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NÃO É a última tragédia ou Sobre lamprans, djambakus e tabancas


Mais um livro para a maratona de literatura africana! O país da vez é Guiné Bissau, terra natal do escritor Abdulai Sila, nascido em 1958, formado em engenharia eletrônica pela Universidade de Dresden, na Alemanha - além de ter sido condecorado, em 2013, como Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Estado francês. (ou seja, o cara é inteligente pacas). Publicado no Brasil pela Editora Pallas, o romance de pouco menos de duzentas páginas apresenta a dura realidade da sociedade guineense, que no livro está no período colonial, mas podemos facilmente deduzir que não ocorreram grandes mudanças desde a independência do país, que só ocorreu em 1973. A personagem principal é Ndani (eu juro que não sei ao certo como pronunciar esses nomes africanos que têm um N antes de consoante...), uma jovem que foi "diagnosticada" pelos chefes religiosos de sua região como "portadora de maus espíritos, que fariam de sua vida uma sucessão de tragédias". Discriminada pelos vizinhos e apresentada pela madrasta ao mundo dos brancos, Ndani decide ir à cidade e torna-se criada de uma família abastada, buscando entender de que forma a vida dos descendentes de europeus se diferenciava da sua própria. Logo ela recebe da nova patroa o nome de Daniela e é orientada a frequentar o catolicismo. Dona Linda, a patroa, é esposa de um homem importante na colônia e acredita carregar uma "missão salvadora" que seria a de levar a civilização e a religiosidade portuguesas aos nativos - sendo ela, portanto, uma metonímia do pensamento português durante a colonização (na verdade, de todas as potências europeias, mas vamos nos ater ao foco do livro). Aliás, a própria Ndani poderia ser interpretada como uma metonímia de seu país. "Se, por um lado, a protagonista tem o corpo habitado por um mau espírito, que transforma sua vida numa sucessão de tragédias; por outro lado, toda a sociedade guineense tem seu território invadido por portugueses 'maus' que desrespeitam a ordem preestabelecida pelas etnias, transformando o território de diferentes povos num único país" (de acordo com Érica Bispo, mestre em Literatura Portuguesa pela UFRJ). Essa invasão violenta, inclusive, é representada pela emblemática cena em que Ndani é estuprada por seu patrão.

 

A história de Ndani se cruza com a do Régulo de Quinhamel, com quem mais tarde ela é obrigada a se casar. O Régulo, que seria uma autoridade tradicional, é um homem que acredita principalmente na promoção de mudanças através do pensamento. Repete em mais de um momento que "duas cabeças pensam melhor que uma" e afirma que " pode mandar só quem sabe pensar". Ele deseja devolver o comando do território aos negros, e "colocar os brancos no seu lugar", e chega a bolar um plano para tal, mas o mesmo não é apresentado pelo autor.

Logo após conhecermos a figura do Régulo, surge aquele que podemos considerar o terceiro protagonista da história: o Professor, um jovem negro que aprendera o oficío em uma Missão, com padres italianos. Ele é convidado a lecionar em uma das escolas fundadas por Dona Linda e seu grupo, mas poucos capítulos depois se apaixona por Ndani. A parte mais importante da presença dele no enredo, entretanto, só é revelada no último quarto do livro - que eu não posso contar porque seria spoiler, e eu sou uma pessoa legal.

 

O vocabulário usado no livro merece destaque, pois apresenta diversas palavras nativas que despertam a nossa curiosidade (graças aos deuses há um glossário ao final da edição).

"A Última Tragédia" tem um enredo que mexeu comigo, em particular o seu desfecho e o epílogo. A carta escrita ditada pelo Régulo ao Professor é extremamente atual e engloba todo tipo de sociedade; o epílogo apresenta uma crítica clara ao colonialismo, mas também abre espaço para a reflexão a respeito do quanto a cultura da metrópole contribui para a formação da identidade da futura ex-colônia. A trajetória de Ndani é intensa, e embora um dos principais momentos de sua vida não seja narrado diretamente pelo narrador (o que, diga-se de passagem, foi um recurso genial), há diversos outros que trazem os sentimentos mais dolorosos e as situações mais tristes da história. Todos os personagens são meticulosamente pensados e representam diferentes posições não apenas naquela sociedade guineense - o negro que se integra à cultura branca, o branco líder opressor, o negro que se rebela, etc. -, mas nas colônias africanas de maneira geral. Abdulai Sila constrói, em "A Última Tragédia", uma narrativa que nos faz refletir sobre política, cultura, sociedade, tradição e história.

 

Recomendado:

- Artigos da mestra Érica Bispo sobre "A Última Tragédia"

http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/A_ultima_tragedia.pdf

file:///C:/Users/J%C3%BAlia/Downloads/8725-21344-1-SM.pdf

- História de Guiné Bissau

http://www.anpguinebissau.org/institucional/historia/historia-guine-bissau/historia-da-guine-bissau

- Artigo da PUC-Minas sobre "A Última Tragédia"

file:///C:/Users/J%C3%BAlia/Downloads/2434-10093-1-PB.pdf

- Entrevista com o autor

http://www.omarrare.uerj.br/numero13/erica.html

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