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O destino dos marítimos ou Sobre a lei do cais

Uma análise amadora de uma obra de Jorge Amado


O primeiro livro que li do autor baiano Jorge Amado (1912-2001) que li foi "Capitães da Areia", no final de 2014 (para o vestibular, porque né), e, se for para defini-lo em uma frase, será "tão legal que nem parece paradidático/leitura obrigatória". MAS quando lemos para uma prova, a análise é mais pragmática e objetiva, perdendo o lirismo da coisa. E se tem uma coisa presente em "Mar morto", escrito em 1934, é lirismo. Poesia em forma de prosa, minha gente, da mais alta qualidade. A ilustríssima escritora Zélia Gattai, esposa do autor, em depoimento anexado à edição de 2008 da Cia. das Letras, o caracteriza como " um romance de fazer sonhar, cheio de poesia".

A história gira em torno dos moradores e trabalhadores das praias da Bahia, em especial das praias do Recôncavo Baiano, e mostra o poder do mar nas vidas dessas pessoas. O personagem principal é Guma, um homem que, ao longo da narrativa, passa de herói a imoral. Nascido na região, o jovem foi logo cedo introduzido à vida de comandante de saveiro (uma embarcação feita de madeira, com velas) por seu tio, Francisco. Ao longo de sua juventude, conhece pessoas singulares, das quais falarei adiante, e a mais importante é, indubitavelmente, Lívia, moça de caráter com quem ele se casa. O livro elabora questões importantes, como a marginalização daquele grupo social, o determinismo e as deficiências de políticas públicas - tudo isso sem deixar de lado o tema principal: o amor. Seja entre pessoas, pelo mar ou pela vida, o amor é protagonista da vez, ao contrário de várias obras mais famosas de Jorge Amado.

 

As mulheres são presença constante em "Mar Morto". Inicialmente apresentadas como meras coadjuvantes, as personagens femininas vão ganhando força no decorrer da história. Lívia é, a princípio, uma heroína romântica - bela, devotada ao marido e apaixonada. Dona alguns dos trechos mais bonitos, ela passa a morar na zona portuária após se casar e se preocupa todas as noites com a segurança de Guma, que leva carregamentos entre as cidades em seu saveiro, Valente. No entanto, existem alguns aspectos de sua personalidade, como a inteligência, que a tornam uma personagem forte e altamente influente no decorrer da obra. O seu final é, em especial, marcante e maravilhoso.

Maria Clara e Judith são mulheres do cais - ali nasceram e para o mar perderam seus entes queridos, e hão de perder seus esposos também. Essas e outras mulheres, casadas com os marítimos, como são chamados no livro, dão um show de sororidade, principalmente nos primeiros capítulos, quando o marido de Judith morre durante uma tempestade. Todas elas se reconhecem como irmãs, detentoras da mesma sina, que é chorar a morte de seus amores em meio às ondas, e, nos momentos difíceis, unem-se e encontram forças umas nas outras.


"[...] ela sente toda a dor de Judith, se sente totalmente sua irmã, irmã também de Maria Clara, de todas as mulheres do mar, mulheres de destinos iguais: esperar numa noite de tempestade a notícia da morte de um homem."


Mas existem algumas que decidem recusar esse destino. Rosa Palmeirão, "de punhal no peito e navalha na saia", saiu pelo mundo colecionando feitos e amantes, desafiando o machismo e "valendo por dois homens". Enamora-se de Guma, por este representar o que, no fundo, ela mais desejava: afeto. Ela causava temor aos homens, uma tentativa inconsciente de vingar-se de seu primeiro amor, que causou a morte prematura de seu filho.

Outra personagem interessante é Esmeralda, uma mulata "de seios fartos e ancas empinadas", companheira do melhor amigo e vizinho de Guma. Detentora de um discurso muito moderno, "se Rufino morresse, arranjaria outro, continuaria sua vida. Não era o primeiro que tinha. [...] Queria era brilhantina para escorrer o cabelo, sandália para pisar no cais, vestido bonito para cobrir suas ancas". Posteriormente, porém, revela-se invejosa e preconceituosa, a ponto de não desejar um filho de Rufino por este ser negro e ela querer "um filho de gente mais branca, pra melhorar a família".

Em seguida, temos a professora Dulce, que veio da cidade e tenta mudar, sem sucesso, a vida daquelas pessoas. Desiludida, ela espera por um milagre, enquanto faz a sua parte, alfabetizando as crianças, que, na maioria, frequentam a escola por apenas seis meses, pois precisam trabalhar para ajudar suas famílias.

Dentre tantas mulheres de peso, a que mais me chamou atenção é uma que aparece por apenas poucas páginas: a prostituta Rita, de dezesseis anos, que foi embora de Alagoas após ter se relacionado com um caixeiro-viajante que a abandonara grávida (o filho morrera). Ela faz Guma lembrar-se de sua mãe, que também é uma "mulher-dama", e ele tenta convencê-la a sair daquela vida. No entanto, durante a conversa, inicia-se um tiroteio e a moça é baleada ao tentar defendê-lo. Essa morte, que me chocou, pode ser um exemplo do determinismo que paira sobre o livro: ela não conseguiu deixar a prostituição - alterar seu destino - e acabou morrendo. De fato, o enredo como um todo estabelece essa ideia: não é possível fugir do que está predestinado a acontecer. Até mesmo Rosa Palmeirão, que viaja pelo mundo, acaba retornando ao seu lugar de origem. Os homens do mar sempre retornam ao seu cais para serem levados por Iemanjá.

A deusa, por sinal, é mencionada em praticamente todos os parágrafos. A crença nela é forte em todos os personagens, exceto talvez o Dr Rodrigo. Ela é descrita como "mãe e amante" de todos os homens do mar, por quem eles são levados na sua hora e para quem as mulheres oram e fazem pedidos. Dona Janaína, como também é chamada, representa a força da natureza e o destino.

 

Mais além da sororidade, a união de forma geral é louvada em "Mar morto". As leis do cais, que regem a conduta de todos os que ali vivem, estabelecem a lealdade, a fraternidade e a solidariedade como regras invioláveis, e os que não as seguem são punidos por Iemanjá. Desavenças e intrigas devem ser colocadas de lado em momentos de perigo, a coragem e a honra devem ser intrínsecos aos homens do mar.

 

Jorge Amado escreveu "Mar morto" aos 24 anos, época em que era filiado ao PCB e havia sido preso por motivos políticos. O livro se inicia com um convite do autor para que o leitor venha "ouvir a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor no mar. E essa não vos parecer bela, a culpa não é dos homens rudes que a narram. É que a ouvistes da boca de um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o coração dos marinheiros". Não considere um sacrilégio, mas acredito que devemos discordar dessa última afirmação e dizer que Jorge Amado entende não somente o coração dos marítimos, mas de todos os humanos, uma vez que é lá que suas histórias nos tocam.




OBSERVAÇÃO: Dada a notoriedade do autor, optei por não fazer qualquer pesquisa sobre a obra e me basear apenas nas minhas impressões e conhecimentos. Para uma análise acadêmica e específica, existem vários trabalhos e artigos disponíveis online.

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